Você nunca havia pensado nisto?

Quando um mal é endêmico e onipresente, provavelmente sua causa não está em nenhum dos fatores diversos e opostos que as opiniões em conflito apontam e inculpam, mas justamente nos pontos em que todas as opiniões estão de acordo e que por isso mesmo jamais entram em discussão.

Burrice

Uma descrição científica e abrangenfe da manipulação ideológica no ensino universitário poderia despertar a consciência da parcela mais honesta dos corpos docentes e colocar a esquerda nacional em discussão dentro das próprias universidades. A proposta de fazer dos alunos fiscais dos seus professores, ao contrário, despertou o senso de autodefesa corporativa da classe acadêmica inteira, congelando o pró e o contra num confronto estático de alegações retóricas e adiando o debate sério para o dia de são nunca.

Palhaços

Um dos traços mais ridículos da intelectualidade acadêmica hoje em dia é que professores que na sala de aula se proclamam admiradores de Rabelais e de Bakhtin não podem ler “cu” ou “merda” nos meus escritos sem me acusar — apelando àqueles estereótipos de bom-tom que fariam o velho Rabelais vomitar — de usar “termos chulos” e “palavras de baixio calão”.

Ma non è una cosa seria

O assanhamento de “resolver” os problemas antes de conhecê-los suficientemente é a marca inconfundível da mentalidade vulgar em que o desejo e a paixão predominam sobre a reflexão madura e o senso do real. Até hoje não existe, por exemplo, uma só pesquisa abrangente sobre a orientação ideológica predominante nas teses universitárias em cursos de filosofia e ciências humanas no Brasil, e o país inteiro já está sacudido por uma intensa discussão em torno de uma proposta contra a “doutrinação”. Não é uma discussão séria e respeitável. Ela opõe somente o conservadorismo de uns ao senso de autodefesa corporativa de outros, os ideais, anseios e sentimentos de dois grupos, não visões da realidade, diagnósticos precisos e diferenças objetivas.

Digo por experiência própria

A ânsia de interferir na esfera prática é a fórmula infalível da agitação inócua. Só consegui mudar alguma coisinha no Brasil porque durante trinta anos escrevi descrições e análises sem nunca sugerir um projeto de lei ou uma medida governamental qualquer.

O carro puxando os bois (2)

Para o bem ou para o mal, toda mudança sociocultural começa nos círculos intelectuais mais altos e só depois mobiliza organizações, grupos militantes, mídia popular etc. O cidadão comum, que recebe o impacto das novas modas mentais sem nem saber de onde elas se originam e imagina poder alterá-las agindo direto nas esferas mais visíveis, é como alguém que esperasse amansar um cão feroz tingindo-o de cor-de-rosa.

O carro puxando os bois

 

 

 

Qualquer campanha de correção de um problema social tem de começar pela documentação e discussão do problema nas esferas intelectuais mais altas e de mais idônea reputação, para só depois, aos poucos, despertar polêmicas em círculos mais amplos e esperar que propostas de solução, diversas e espontâneas, vão aparecendo na sociedade.

Invertendo radicalmente esse processo lógico e natural, aparecendo já com um slogan e uma proposta — e, pior ainda, com um projeto de lei –, antes mesmo de que existisse um só livro com a documentação canônica do problema –, o Escola Sem Partido tornou-se ele próprio o foco das discussões, colocando num confortável segundo plano o problema enquanto tal e atraindo sobre si toda sorte de malentendidos e preconceitos.

Imaginem o que teria acontecido se, em vez de escrever “O Imbecil Coletivo” e mais mil e um artigos documentando ao longo de vinte anos a destruição da alta cultura no país, eu tivesse começado por lançar um projeto de lei instigando o público a denunciar e punir os intelectuais ineptos. Não que estes não merecessem umas boas chineladas na bunda. Mas, em vez da destruição da alta cultura, o foco da discussão seria o perigo dos chinelos.

Éguas que falam (1)

Na abertura dos seus primorosos e eminentemente dispensáveis comentários à minha entrevista, o repórter Fred Mello Paiva descreve a vitória de Jair Bolsonaro como uma catástrofe sem precedentes e diz enxergar na minha pessoa “a chave para compreender onde fomos amarrar a nossa égua”.
A égua, entende-se, é o Brasil — a montaria que, amarada em local impróprio, se desgarrou dos seus donos e agora anda por aí com presunções obscenas de decidir o próprio destino sem consultar os sábios conselhos daqueles que criaram quatorze milhões de desempregados, setenta mil homicídios por ano, um rombo de trilhões nos cofres públicos e a redução do sistema nacional de educação à maior fábrica de analfabetos funcionais que já se viu no mundo.
Compreendo que tais criaturas vejam na nação brasileira nada mais que uma égua, um bicho para ser amarrado, chicoteado, domado, arreado, montado, reduzido à mais vil obediência e por fim morto e esfolado para servir de repasto aos sinhozinhos.
Mas haverá quem ache um absurdo acintoso chamar um país de égua e ainda confessar abertamente que a amarrou. Eu, por exemplo, em todo esse episódio só vi uma égua — o próprio Fred Mello Paiva –, mas estava desamarrada, puiando e relinchando como louca. Talvez estivesse também por ali o Mino Carta, mas não o vi.