AOS GENERAIS E SIMILARES

Olavo de Carvalho
Carl Schmitt definia a política como aquele setor da atividade humana no qual, sendo impossível a arbitragem racional das divergências, só restava juntar os “amigos” contra os “inimigos”. Isso quer dizer, obviamente, que mesmo no entender daquele entusiasta da política só uma parte ínfima da experiência humana pode estar submetida aos critérios “políticos”.  A total degradação e estupidificação da vida social é assinalada, então, pela absoluta politização de todas as questões, conflitos e divergências. Isso exclui dos seus altos postos naturais a ciência, a filosofia, a moral, a religião e até o senso comum. Só resta, como critério supremo de julgamento a pergunta mais imediatista e mais vil dos políticos e politiqueiros: Ele está “a nosso favor” ou “contra nós”? Isto é exatamente o que se passa no Brasil de hoje: moldada por vigaristas e analfabetos funcionais ávidos de poder e de dinheiro, a opinião pública só entende todas as afirmações, especialmente as minhas, como “tomadas de posição” a favor deste ou daquele grupo. Mesmo as análises que faço de acontecimentos de mais de meio século atrás são reduzidas a fusquinhas e caras feias contra este ou aquele alto funcionário, como se eu estivesse disputando seu cargo. O que digo das Forças Armadas e da sua atuação no regime militar é uma TESE HISTÓRICA ABSOLUTAMENTE IRREFUTÁVEL. Não podendo contestá-la, generais incultos e presunçosos tentam reduzi-la a uma conspiração jornalística contra as suas augustas pessoas. Afirmo categoricamente: nenhum egresso de academia militar tem hoje a mais mínima condição de impugnar a minha análise ou sequer de apreender o alcance histórico do que estou dizendo. Esperneando histericamente contra a verdade histórica, só mostram o quanto é exíguo o seu horizonte de consciência e invencível a sua submissão aos critérios politiqueiros de julgamento.
Não temam, burocratas, fardados ou civis. Não ambiciono os seus postos nem o seu tipo de prestígio. Sou um escritor, filho das minhas obras e não de cargos recebidos. Jamais me rebaixei nem me rebaixarei a disputar aquilo que para vocês é o supremo valor da existência.

Sto. Tomás, a vaca voadora e nós

Nenhum historiador profissional do mundo aceita hoje em dia a lenda setecentista que deprecia a Idade Média como “Idade das Trevas”, mas ela continua firmemente arraigada no credo universitário brasileiro e é repassada de geração em geração por sociopatas militantes e analfabetos funcionais aos quais um abuso de linguagem confere o estatuto de intelectuais acadêmicos.

Só isso já bastaria para ilustrar a imensidão do abismo mental que se alarga dia a dia entre as nações cultas e aquelas onde a negligência ou cumplicidade dos governantes permitiu que as instituições de ensino fossem monopolizadas por propagandistas e demagogos a serviço de grosseiras ambições de poder.

O discurso de depreciação da Idade Média foi criado por beletristas e agitadores do século XVIII como expediente de ocasião para a propaganda anti-religiosa, destinada a minar as bases morais e ideológicas da monarquia. Malgrado a imensa penetração que obteve na mitologia popular, graças ao respaldo de toda sorte de organizações políticas e sociedades pseudo-iniciáticas, o fato é que ela jamais existiu como teoria histórica aceitável nos meios científicos e hoje subsiste apenas em círculos de ativistas semiletrados do Terceiro Mundo, à margem das correntes vivas do pensamento mundial.

No Brasil ou na Zâmbia, “medieval” ainda pode ser usado como termo pejorativo nas polêmicas da mídia, mas quem quer que se deixe impressionar por isso mostra que é escravo de uma atmosfera mental provinciana, sem a mínima abertura para o horizonte maior da cultura universal.

Em contrapartida, não há estudioso sério que hoje possa contestar a afirmação de Schelling, segundo a qual a transição da filosofia medieval para a atmosfera moderna inaugurada por Descartes assinala a queda do pensamento filosófico para um nível pueril. (2)

Essa queda revela-se da maneira mais escandalosa na simples perda da técnica filosófica cujo domínio distingue o filósofo do beletrista e do ideólogo.

A longa prática da disputatio nas universidades havia dotado os intelectuais europeus de uma habilidade lógica extraordinária, capaz de apreender num relance o sentido dos conceitos, a distinção entre vários níveis de abordagem, os pressupostos embutidos nas discussões, o senso das relações entre a parte e o todo, a hierarquia de credibilidade das premissas, enfim, todas as condições indispensáveis para uma investigação filosófica consistente.

De repente, tudo isso se perdeu. Descartes, malgrado sua alegação de aprendizado escolástico, recai em erros lógicos primários que nenhum estudante medieval cometeria, como o de não perceber que uma noção puntual do ego pensante é um conceito abstrato e não uma intuição direta. (3)

O show de inépcia prossegue ao longo de dois séculos com a disputa de racionalistas e empiristas, que qualquer escolástico treinado resolveria em vinte minutos.

Malgrado a introdução meritória de novos temas e a persistência de alguma habilidade escolástica notada em casos esparsos, o ciclo filosófico moderno é em geral de uma grosseria sem par e o pouco que dele se aproveita reside precisamente nos sistemas que, nadando a contracorrente, conservam o essencial do legado escolástico, como é o caso dos de Leibniz e Schelling. Não por coincidência, esses sistemas foram os que encontraram menos compreensão entre seus contemporâneos, tendo de esperar o século XX para que o mundo acadêmico percebesse sua importância incomum.

Também não é de estranhar que, em plena ascensão do estilo moderno, algumas antecipações geniais feitas pelos escolásticos remanescentes, especialmente na Espanha e em Portugal – como a teorização da economia de mercado dois séculos antes de Adam Smith e a formulação do indeterminismo físico três séculos antes de Heisenberg -, passassem completamente despercebidas, enquanto a moda mecanicista, hoje totalmente desmoralizada, posava como a encarnação mesma do espírito científico em oposição às “trevas” escolásticas.

Tudo isso revela o quanto a história da filosofia, como a história de tudo o que é humano, está sujeita a oscilações inteiramente irracionais e fortuitas, e o quanto é imprudente tentar enxergar na sucessão temporal das filosofias algo como uma progressiva vitória da luz sobre as trevas. Habet mundus iste noctes suas, “este mundo tem suas noites”, dizia S. Bernardo de Clairvaux, e nada o ilustra melhor do que as crises de regressão e de esquecimento que pontilham a história da filosofia, obrigando cada geração de estudiosos a desencavar dos escombros os tesouros que suas antecessoras, imbuídas da ilusão de estar no pináculo da evolução humana, atiraram ao esquecimento.

Um desses tesouros, ciclicamente esquecido e reencontrado, sempre diferente a cada reencontro, é a filosofia de Sto. Tomás de Aquino.

O que ela tem a dar ao mundo de hoje já não coincide exatamente com aqueles aspectos seus que foram trazidos à luz pelo renouveau tomista inspirado pelo Papa Leão XIII. O neotomismo do século XX, com todas as contribuições esplêndidas que trouxe à reconquista de uma perspectiva cristã na filosofia, talvez constitua, hoje em dia, até mesmo um obstáculo a uma tomada de consciência dos ângulos da filosofia tomística que mais urgentemente a atual geração necessita redescobrir.

Mas algumas outras dificuldades, mais elementares, se apresentam desde logo ao estudante que se aventura nas páginas de Sto. Tomás. Examinarei aqui duas delas.

A primeira é que a filosofia de Tomás não pode ser facilmente resumida em alguma fórmula como “Penso, logo existo”, “Todo o real é racional e todo o racional é real” ou “A existência precede a essência”, com que o público moderno se acostumou a gravar na memória a imagem vulgar dos sistemas mais badalados. Nenhuma filosofia verdadeiramente grande se deixa aprisionar nesses rótulos. Eles servem para condensar universos filosóficos pobres ou fictícios – pobres como o de René Descartes ou fictícios como os de Hegel e Sartre –, mas não servem para Aristóteles, Leibniz, Schelling ou Husserl, cujos sistemas não se fecham nas fórmulas de uma geometria imaginária mas permanecem abertos à complexidade do real vivente, cheio de surpresas. Também não servem para Tomás de Aquino, pela mesmíssima razão. É relativamente fácil conceber, a partir de certas fórmulas resumidas, o que Descartes ou Hegel teriam dito sobre isto ou aquilo quando não se conhece o que disseram efetivamente. Mas o que Tomás tem a dizer não é nunca inteiramente previsível, porque seu sistema tem a complexidade orgânica de uma criação da natureza, que não é linearmente coerente mas contém sempre incoerências superficiais absorvidas numa coerência mais profunda.

Essa dificuldade leva muitos estudiosos a simplificar o pensamento do grande santo, espremendo-o numa logicidade um tanto estereotipada que, se o torna mais digerível desde os princípios do próprio intérprete – freqüentemente mais interessado numa apologética paroquial do que em filosofia -, acaba por eliminar a variedade e o elemento surpresa que constituem um dos encantos maiores da obra tomística.

Um exemplo característico é a eliminação habitual do componente astrológico, essencial à obra e à sua compreensão. A justa rejeição magisterial da astrologia como técnica preditiva levou com freqüência a jogar a criança fora junto com a água do banho, e no caso de Tomás a “criança” era nada menos que toda uma filosofia da natureza e da liberdade. Para ele, Deus move os corpos inferiores por meio dos superiores; logo, todos os fenômenos da ordem natural terrestre são reflexos dos movimentos dos astros. Como o corpo humano faz parte da ordem natural, ele está tão sujeito às influências dos astros quanto qualquer outra coisa que se mova sobre a Terra; e como as mutações sofridas pelo corpo interferem na conduta por intermédio dos sentidos e das paixões, está claro que tudo quanto na conduta humana seja de ordem puramente passional, isto é, independente da influência ordenadora da inteligência e da vontade racional, pode muito bem ser compreendido com base na influência dos astros. Essa clara reivindicação de uma astrologia natural soa demasiado escandalosa aos ouvidos dos crentes, e por isto foi freqüentemente suprimida das exposições “oficiais” da filosofia tomista, o que se tornou no entanto indefensável depois do estudo definitivo de Thomas Litt. (4)Não obstante, a edição eletrônica da Summa Contra Gentiles no site do Jacques Maritain Center omite ainda os capítulos concernentes à influência dos astros, que se contam entre os mais notáveis da filosofia tomística da natureza. (5)

Esses arranjos e supressões, criando uma facilidade enganosa, acabam por dificultar a compreensão do que existe de mais característico no pensamento de Tomás, que é precisamente a coexistência de uma poderosa inteligência metafísica com a boa-fé quase simplória com que sua alma santa se abria aos dados do real e da ciência do seu tempo, sem nenhuma prevenção dogmática. A história da vaca voadora é provavelmente fictícia, mas reflete bem o espírito de Tomás. O santo estava estudando quando um monge o chamou às pressas para ver uma vaca que passava voando diante da janela. Tomás saltou da cadeira e, reclinado ao parapeito, vasculhou os céus em busca da vaca, enquanto em torno os outros monges explodiam numa gargalhada coletiva. Surpreendido, o santo se explicou: “É que achei mais razoável uma vaca voar do que um monge mentir.” O que é certo é que Tomás, alertado para qualquer fenômeno, por mais esquisito e alheio a suas crenças, jamais recusaria examiná-lo com a maior boa fé, mesmo que isto o levasse a conclusões bem diversas das esperadas. Nada poderia contrastar mais enfaticamente com a imagem de um sistema hierárquico fechado, que se consagrou na imaginação do leitor contemporâneo por obra de apologistas ingênuos e adversários astutos. Diz Eric Voegelin: “Esse sistema frouxamente atado, em certos pontos repleto e abundante de excessos de digressão, é o perfeito símbolo de uma mente que não é nem apriorística nem empirista, mas em si mesma um ser histórico vivente, experienciando sua harmonia com a manifestação de Deus no mundo histórico.” (6) Não por coincidência, prossegue Voegelin, algumas das idéias mais interessantes de Tomás se encontram espalhadas nas digressões e não no corpo central dos argumentos.

Entre perder-se na riqueza inesgotável do sistema vivente e recortá-lo segundo um esquema didático prévio, o leitor moderno optará, decididamente, pela última alternativa, preferindo antes conformar-se com “manuais de tomismo” – quando não com aquelas reduções pejorativas tão caras à mentalidade uspiana (7) — do que lançar-se a uma leitura direta que o atemoriza e confunde.

Uma segunda dificuldade, diretamente ligada à primeira, é a resistência obstinada que a mente moderna oferece a uma proposta filosófica que pretenda ser ao mesmo tempo realista e cristã. Mentes forjadas no molde do preconceito kantiano segundo o qual Deus, por estar infinitamente separado da esfera da nossa experiência sensível, só pode ser objeto de crença e não de conhecimento — preconceito que se incorporou na cultura universitária contemporânea com uma autoridade dogmática intolerante a avassaladora –, dificilmente podem conceber que a referência a Deus seja senão o apelo a um artigo de fé, totalmente separado do conhecimento dos fatos da ordem sensível e até da especulação filosófica racional. Essa mente acabará por dividir a filosofia de Sto. Tomás em dois compartimentos estanques, separando “filosofia” de “teologia” segundo noções estereotipadas de uma e da outra. Com isso, perderá justamente o essencial dessa filosofia, que é a unidade tensional e viva do imanente e do transcendente.

Tomás, embora rejeitando a convicção de seu amigo S. Boaventura de que Deus é um dado intuitivo imediato, e embora subscrevendo tudo quanto a doutrina da Igreja afirma sobre o papel decisivo da fé para a salvação das almas, jamais se conformou com um Deus que fosse simples objeto de crença ou mesmo a pura conclusão de um silogismo. Deus para ele é ineludivelmente uma presença, e esta presença se manifesta de maneira prioritária nos dados do mundo sensível. Ele estava persuadido de que os fatos da ordem sensível, sendo expressões diretas do Verbo criador, jamais poderiam mentir. Por isto ele não hesita em sacrificar a coerência superficial do sistema em favor da variedade dos fatos, que têm para ele uma autoridade divina. Daí seu realismo, inseparável do seu cristianismo. No universo tomístico, o verso do salmista, Coeli enarrant gloriam Dei — “Os céus exibem a glória de Deus” — significa, da maneira mais enfática, que astronomia,  geologia, zoologia e demais ciências da ordem sensível não são, em última instância, senão teologia simbólica. Na Summa Contra Gentiles ele enuncia a fórmula mesma da hermenêutica simbólica da natureza: “Nós falamos por meio de palavras, Deus fala por meio das coisas.” Logo, a transmissão da mensagem divina, para Tomás, não se esgota no conteúdo verbal explícito da Bíblia e na doutrina formal que dele extrai o magistério da Igreja; ela prossegue, diante de nós, no desdobramento inesgotável dos fatos da ordem natural e histórica. Entre a verdade que “desce” na revelação do Sinai e na encarnação de N. S. Jesus Cristo e a verdade que “sobe” dos fatos sensíveis ao sentido eterno que neles se manifesta, aí residem precisamente o desafio e a tarefa do filósofo, erguido assim ao estatuto de pontifex, de construtor de pontes entre os dois mundos que o homem habita simultaneamente. Que a construção seja trabalho inesgotável e altamente problemático, que ele seja sistêmico e orgânico por vocação mas jamais redutível a um sistema perfeito e fechado, eis o que dá à filosofia tomística a peculiar tensão intelectual que o torna, para nós, de uma rara força estimulante.

Essa tensão reaparece, sob formas diversas, em mil e um pontos da doutrina tomística. Um deles, realçado no belo estudo que Luiz Jean Lauand antepôs à sua tradução (de parceria com Mário Bruno Sproviero) de duas “questões disputadas” do mestre, é que a noção mesma de “conhecimento”, nessa doutrina, tem seu fundamento último na teologia da criação: “Não é possível apreender o núcleo da expressão ‘verdade das coisas’ – ele simplesmente nos escapa – se nos recusarmos a pensar as coisas expressamente como criaturas, projetadas pela intelecção de Deus, que pensa-o-ser… O ser-pensado das coisas por Deus fundamenta a sua inteligibilidade para o homem.” (8)

Na entrada do ciclo moderno, Descartes, ignorando por completo esse item da doutrina tomística, retornará à noção de Deus como fundamento do conhecimento, mas compreendendo-O apenas como garantia externa da conexão entre o ego pensante e o mundo físico. Que diferença entre essa justaposição mecânica de três fatores e a reabsorção tomística de sujeito e objeto na sua condição originária de criaturas!

Por isso mesmo é puramente metonímica – e, se tomada ao pé da letra, até insultuosa – a noção vulgar que apresenta Tomás como o homem que se dedicou a “harmonizar teologia cristã e filosofia grega”. Harmonizar doutrinas seria antes trabalho de um erudito de gabinete, não de um filósofo. Tomás é um filósofo, e não menor do que seu mestre Aristóteles, justamente porque o que ele busca não é a harmonia entre doutrinas prontas, mas o elo perdido entre dois universos de experiência: a experiência do apelo divino, a experiência do mundo sensível. O que ele busca é a absorção de toda a realidade num sentido espiritual, e não a solução de um problema dogmático-administrativo.

Que esse empreendimento tivesse também, no contexto histórico imediato, uma tremenda importância política que passou despercebida a seus contemporâneos, os quais por isto precipitaram a Igreja numa longa sucessão de quedas e humilhações que ainda está longe de ter-se esgotado, é um desses casos de engano geral ante um acerto individual, que mostram, acima de toda possibilidade de dúvida, que a verdade aparece com mais facilidade à alma do homem singular empenhado em conhecê-la do que à autoridade coletiva, mesmo quando respaldada em garantias divinas de última instância.

Tomás compreendia, mais que ninguém, que da tensão harmônica entre o espiritual e o sensível dependia a sobrevivência da própria Igreja enquanto instituição, e mais ainda a do sacrum imperium que deveria representar a forma histórica por excelência da civilização cristã, a encarnação da Igreja na história.

Por isso ele insistia na compreensão simbólica da natureza, que integra as ciências do mundo físico numa visão metafísica que é, em essência, a mesma que se depreende da revelação evangélica. (9)

A dissolução da síntese civilizacional da Idade Média e a quebra da unidade da Igreja acompanham pari passu a divisão irrecorrível de “ciências sagradas” e “ciências profanas”, que, a partir do século XIII, e contra a intenção manifesta de Tomás, foi suprimindo destas últimas toda significação espiritual, até torná-las independentes e hostis a qualquer consideração de ordem metafísica, para não dizer teológica, de modo que não resta ao apologeta cristão senão tentar harmonizar a posterioriciência e teologia, num esforço vão de reduzir a uma linguagem comum conclusões obtidas por métodos incompatíveis e mutuamente excludentes. No século XIX, a ciência da natureza já se declara inimiga aberta da religião cristã. Acuados, os cristãos mal conseguem resistir, no século seguinte, à tentação de apegar-se, in extremis, à conciliação falsa e oportunista elaborada pelo Pe. Teilhard de Chardin, prostituindo a religião no leito da ciência e vice-versa. (10)

Ao mesmo tempo, o simbolismo da natureza, expelido do mundo católico “oficial”, era açambarcado pelas seitas heréticas e gnósticas, que o modificaram a seu belprazer — embaralhando as criteriosas distinções que nele Tomás havia estabelecido entre o racional e o supersticioso, entre o divino, o natural, o humano e o demoníaco — e fazendo dele a base de não sei quantas concepções mágicas e loucas que deram origem às sociedades secretas revolucionárias do século XVIII, (11) ao florescimento mórbido de pseudo-espiritualismos no século XIX(12) e por fim à grande farsa da New Age nos anos 60 do século XX. (13)

Tal como a divisão de racionalismo e empirismo – cuja unidade dialética, no entanto, transparece tão nitidamente na filosofia do próprio Tomás –, a ruptura entre religião e ciência solapava a base mesma do sacrum imperium e da inserção da Igreja no mundo como Mater et magistra do devir histórico.

Perdido o elo essencial entre o espiritual e o sensível, era inevitável que se rompesse mais cedo ou mais tarde a unidade da Igreja com o corpo político da sociedade, como de fato veio a acontecer com o advento das monarquias nacionais, condenadas à morte já no nascedouro, e, em seguida, do moderno Estado leigo, no qual a autoridade religiosa recua para o domínio privado enquanto a esfera pública é entregue à guarda daquela mistura inextricável de cientificismo, ocultismo e ideologias revolucionárias milenaristas, que compõe a fórmula da típica mixórdia mental do intelectual moderno.

Paralelamente, o credo cristão, ao perder sua função orgânica na sociedade, perde também, sobretudo no meio protestante, a flexibilidade e a sabedoria medievais, enrijecendo-se num moralismo incompatível com a vida prática moderna e impondo às almas uma carga pesada demais, que elas acabam por rejeitar ante as ofertas tentadoras de uma vida mais fácil e confortável no seio do agnosticismo e da indiferença espiritual.

O humilde pároco de aldeia de Bernanos, encarnação de valores da França medieval no seio do clero moderno, compreendia ainda, como a Igreja de São Luís e de Joana d’Arc, que numa paróquia — e a paróquia simboliza o mundo humano em geral –, o pecado e a graça vivem num estado de equilíbrio instável cujo centro de gravidade, no entanto, é “baixo, muito baixo”. Ele compreende isso, mas não consegue transmitir essa verdade a seus superiores, típicos representantes do clero moderno, tão enrijecidos numa moral monástica incomunicável com a complexidade do mundo quanto, por outro lado, flácidos e complacentes ante o atrativo intelectual de idéias modernas cuja periculosidade lhes escapa porque elas não ofendem diretamente o receituário moral em que se resume o seu cristianismo.

Estudando a história dos costumes medievais, (14) surpreende-nos observar o quanto a Igreja daqueles tempos era tolerante e compassiva com fraquezas humanas que, num período posterior, bastariam para expor um pecador à execração geral, principalmente no ambiente protestante cujo advento condensa simultaneamente as duas tendências opostas e inseparáveis nascidas da quebra da unidade medieval: o recuo da religião para a esfera privada e a adoção de rígidos critérios de moral monástica para toda a sociedade civil. Um caso como o de Jimmy Swaggart, o pregador fervoroso submetido a humilhação pública e obrigado a abandonar o magistério por conta de um simples pecado carnal, seria impensável na Idade Média: o pecador confessaria seu erro e voltaria ao púlpito com mais entusiasmo ainda, arrebatado pela efusão da Graça. Seu arrependimento seria propagado de cidade em cidade e, no ambiente fortemente emocional da época, suscitaria lágrimas de comoção entre os fiéis.

É um erro enorme, criado pela propaganda anticristã, imaginar a “igreja institucional” como sede do moralismo autoritário e portanto a supressão da autoridade pública da Igreja como uma libertação da consciência pessoal. A religião medieval, justamente por sua participação imediata no mundo social e político, podia ser mais compreensiva e flexível justamente porque arcava com parte da responsabilidade pela esfera mundana, onde o centro de gravidade é “baixo, muito baixo”. Recuando para a esfera privada, ela se imbui de um monasticismo deslocado e intolerante, ao mesmo tempo que, para piorar as coisas, o Estado, prevalecendo-se de seu prestígio de libertador e progressista, se aproveita da ocasião para impor a populações desmemoriadas toda sorte de exigências tirânicas que elas aceitam porque não vêm sob a chancela de um dogma religioso, mas sob a bandeira da liberdade e das luzes. Qualquer papa medieval consideraria um pecado contra a ordem divina do mundo humano tentar derrubar um governante bom e eficiente sob a acusação de vida dissoluta ou corrupção pessoal, pois sabia que, na paróquia como no mundo, o bem comum está acima das exigências de perfeição individual. Uma igreja sem responsabilidade de governo não tem por que se preocupar com isso, e pode, a pretexto de moral, ajudar a desequilibrar a ordem social e facilitar a ascensão de insensatas ambições revolucionárias.

Tudo isso já estava, de certo modo, previsto e remediado na filosofia de Tomás. Quando ele sonda os “processos ocultos da natureza”, (15) admite a existência de fundamento na quirologia e na alquimia, (16) distingue entre adivinhação natural e demoníaca (17) ou estabelece os limites entre um estudo científico e uma abordagem supersticiosa da influência dos astros na conduta humana, (18) só a extrema covardia ante a hegemonia do cientificismo moderno pode levar um intérprete cristão a depreciar tudo isso como meros passos obscuros de um precursor canhestro da ciência materialista. Bem ao contrário, esses aspectos que muito tempo foram tidos como menores e marginais na interpretação do tomismo representam, para nós hoje, a mais bela promessa de um resgate cristão do simbolismo da natureza, que já por tempo demasiado permanece refém de feiticeiros, gnósticos e heréticos, parceiros ocultos do cientificismo dominante.

Felizmente, ainda está em tempo de reconquistar o terreno perdido. Para isso, é preciso apenas reencontrar o sentido da filosofia cristã da natureza, sem a qual uma filosofia cristã da sociedade e da política não passará nunca de um arranjo improvisado ex post facto e sempre sujeito a ser explorado em benefício de ideologias anticristãs. Mas essa reconquista pressupõe inteligências capazes de inspirar-se no exemplo de Tomás – capazes de suportar a tensão criadora entre o imanente e o transcendente, entre o natural e o espiritual, e de se abrir à variedade dos fatos com a certeza absoluta de que, malgrado suas aparências contrastantes e assustadoras, por eles fala a voz do Divino Salvador. Muitos dizem que a Igreja de hoje precisa de santos. Mas o próprio Tomás dizia que um pouco de santidade com muita sabedoria era preferivel a muita santidade com pouca sabedoria. Talvez o que a Igreja de hoje precise é de inteligências desassombradas, capazes de não recuar nem mesmo ante a hipótese da vaca voadora.